TRÊS FÁBULAS CONTRA-SENSO
Ouviu-se perguntar à Greve se, como é notório, fomenta a moleza da lesma, a indolência.
— Contas que te responda, Capital, algo deste teor: não me peças para falar porque seco a boca e custa arrastar-me até ao copo de água.
[A Greve não mais disse, o Capital continuou a argumentar] — Tens ideia da Carta del Lavoro? Greve de negligentes!, ressequidos, ociosos, serão mirrada ossada para canídeos, pois não se vislumbram abutres nos aterros do lixo, disso vocês se livram.
— Não labuto por um prato de lentilhas! Proletário, lembra-te, sou a mais valia. Não tens esse escrúpulo na alma! [E voltando-se para um compagnon de route] — E tu, ó mascarado de cumpridor de Trabalho Digno, és fura-greve, defunto adiado, mereces honras no painel de Fábrica onde te esfalfas, caso emurcheceres, transido, a suares as estopinhas, como compensação caridosa, talvez um sino soe O TRABALHO LIBERTA!
— Deves ter no bolso estopins, bastantes rublos, ó incendiária! Que ociosidade! Sindicalismo marxiano, marxólogo não serás, e marxista? Diz-me!
[Hagiografia ideológica, da mais antiga, em mística cruzada.]
*
A Obscenidade (que nada vale fora do rol das infâmias) esperneia erudição para combater as humilhações, a aversão no pelourinho da Ética e tudo o mais que a injustiça. [Consta do índex; sujeita a obstrução sempre que a detetam, que suspeitam dela, ou a adivinham a esvair-se em sombra espectral, por isso a vigiam ininterruptamente.]
— Que declaras em tua defesa, ó infernal obscena? Como te salvarás da condenação que gente convicta e prudente proclama para nos salvar do imundo das partes pudendas que dás a observar, miseranda, que sem pudor exibes qualquer que seja o cenário e a circunstância?
A Obscenidade respondeu com arrogante convicção, auspiciosa, arguta, em tom jaculatório saído da sua garganta funda — A baixeza que devemos abolir é a guerra!
[Esta Fábula não acolhe Monsieur d’ La Palisse.]
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A Carência, contra o nefando egoísmo, grita ao Excesso — Dá-me o bastante, olha para mim, só és Excesso enquanto eu for penúria.
— Se o dizes como dizes, responde o Excesso, saberás de antemão que a minha condição dependerá do teu sofrimento. Pressupões como solução do problema, que abra os cordões à bolsa. Compreende-se o que me propões, que seja benevolente, e desça à tua condição. Se cumprisse essa bondade, não pareceria a ser eu o sofredor?
— De modo algum! De forma alguma! Aspiro, reconheço, à Utopia. Mas vê a movimentação da água na clepsidra, ou na ampulheta, onde um vaso esvazia a areia enquanto outro se enche.
— É a contingência da vida ter de medir o tempo, Carência, mas eu pretendo continuar a lê-lo com a minha classe.
[Daqui não se consegue deduzir nada em sintonia com os Céus.]
José Emílio-Nelson é escritor e editor do CEJMS.
Nasceu em Espinho, 1948.
Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto.
Publicou poemas e ensaios em revistas literáriasportuguesas eestrangeiras.
Editou BELEZA TOCADA: OBRA POÉTICA 1979-2015. Posteriormente, publicou: SONETOS DE VESTE PLUMA, ENTÃO ASSIM FALO; recentemente: ANTÃO OU A PRÓTESE DE NAZARENO e ROSA CANINA.