As experimentações com a própria vida são a base da micropolítica. Trata-se, aqui, de uma política que é imediatamente prática, pois lida com forças e intensidades.
É no corpo que experimentamos a chegada ou a fuga de parcelas de imanência, ou de pequenos corpos sem órgãos, por isso ele requer prudência. O corpo se encontra organizado por estratos desde a infância. E o conjunto dos estratos é o sistema de juízo de Deus, grande demais para ser enfrentado. É preciso contar com “injeções de prudência” para não se fracassar. O fracasso faz com que o juízo de Deus recaia sobre o experimentador com mais violência ainda.
É a mesma questão de “como fazer para si um corpo sem órgãos”: existem linhas nas quais o experimentador se engancha. É preciso perguntar a si mesmo: “Como produzir as intensidades correspondentes, sem as quais ele permaneceria vazio?” Outra questão: “Como chegar ao plano de consistência?” Como atingir a “conjugação das intensidades produzidas em cada corpo sem órgãos”? E mais: “Como traçar um contínuo de todas as continuidades intensivas”?
As experimentações se agitam a tal ponto que o próprio plano de consistência, o próprio campo de imanência, vem a ser questionado como aquilo que deve ser construído, e construído a cada instante, a cada imantação atual de intensidades, transversalizando o curso do tempo.
Escolhemos o exemplo de experimentação com as drogas. E, com a experimentação de drogas, seguimos a sugestão tão citada por Deleuze/Guattari e Carlos Castañeda.
Por que trabalhar com Carlos Castañeda em filosofia? Como já citamos, Deleuze/Guattari abrem a filosofia a uma exterioridade, a domínios exteriores a essa disciplina.
Com isso, mostram que o “pensamento não é exclusividade da filosofia, mas uma propriedade de qualquer tipo de saber”.[1] São as ressonâncias da filosofia que ecoam em muitos planos. À maneira indígena, Carlos Castañeda é um grande pesquisador do corpo sem órgãos.
Os feiticeiros do México antigo costumavam usar três plantas alucinógenas: o peiote, a datura e o cogumelo.[2] Eles já conheciam as propriedades alucinógenas dessas plantas. Os xamãs usavam essas ervas segundo a descrição etnográfica de Carlos Castañeda, “para o prazer, para as curas, para a feitiçaria e para se atingir um estado de êxtase”.[3]
Segundo seus ensinamentos, a Datura inoxia e a Psilocybe mexicana eram usadas “para a aquisição do poder que ele denominava ‘aliado’. Associava o uso da Lophophora williamsii à aquisição da sabedoria, ou ao conhecimento da maneira certa de viver”.[4]
De qualquer forma, os índios recorriam ao poder dessas ervas com o propósito de provocar “estados de uma percepção especial num ser humano (…). Existem certos objetos que são imbuídos de poder”.[5]
O uso dessas substâncias passou a ser criminalizado e proibido a partir da colonização cristã, pois, muitas vezes, o efeito dessas substâncias impedia a catequese dos índios. Desde então, não seriam permitidos experimentos sem que se atraíssem censura e repressão. Por isso, é uma questão de política e de polícia. “Não deixarão você experimentar em seu canto.”[6]
Nos arquivos mexicanos do Tribunal da Inquisição, há o caso de um processo em que um índio é acusado porque ‘comunga as pessoas e ele mesmo comunga, com uns pequenos cogumelos, que chamam em sua língua teonanácatl, que é coisa endiabrada, pela qual saem dos sentidos e dizem ter visões endiabradas (…) é o corpo do demônio (…) pequenos fungos para fazerem suas velhacarias e são por eles dedicados ao Demônio.[7]
No mundo dito civilizado, as drogas alucinógenas já foram usadas com fins terapêuticos em diversos momentos. Aldous Huxley foi um dos que se submeteram a esse tipo de terapia. Em uma das sessões, esperando pela chagada do médico com mescalina, diz ele:
Eu estava ali e estava disposto, na verdade ansioso, a servir como cobaia. (…) O medo era de ser dominado, de desintegrar sob uma pressão de realidade maior que pudesse aguentar uma mente acostumada a viver a maior parte do tempo num aconchegante mundo de símbolos.[8]
Alberto Fontana, psicanalista argentino, experimentador prudente de drogas alucinógenas, classifica o uso de LSD em clínica como um estado de “vivência oceânica integradora”,[9] provocada pela ingestão de alucinógenos. Era um estado especial de êxtase orgânico e perceptivo no qual o “Eu se liga ilimitadamente ao Id, e ambos com o cosmos, fora de todo espaço e tempo”.
Essa percepção sobre os acontecimentos vividos pelo paciente levou Fontana a acreditar que esse modo de funcionamento indicava que o “núcleo central da personalidade” estava exposto à luz. A vivência sensitiva de integração do corpo individual com a subjetividade cósmica é muito típica nas culturas indígenas e se repete inúmeras vezes em diferentes tipos de relatos de experiências alucinógenas.
Em temporada no México, aguardando para participar de um ritual com Peiote, Antonin Artaud ouviu algo muito semelhante às ideias de Fontana, acerca de um índio:
“O peiote, percorrendo todo o eu nervoso, ressuscita a memória dessas verdades soberanas e não faz, foi-me dito, perder mais nada à consciência humana, e ao contrário permite que ela recupere a percepção do Infinito”.[10]
Tanto no relato de Artaud como nas conclusões de Fontana, as percepções sensitivas de integração cósmica, ligadas ao infinito, tendem a ser interpretadas como um caminho para a construção de outro tipo de conhecimento.
Com essas drogas em psicoterapia, havia um ganho na intensidade do material trabalhado, ou seja, as memórias e ideias dos pacientes eram investidas de afectos primários, quase instintivos, que rompiam as barreiras da racionalização.
Pesquisas realizadas em pacientes esquizofrênicos revelam estreita associação entre a percepção alucinógena e o que seria a percepção na loucura. Ou seja, as drogas induzem os indivíduos àquilo que Deleuze/Guattari classificam como esquizofrenia.
Esses experimentos afastam a loucura da perspectiva estritamente patológica com que se entendia a esquizofrenia, fazendo com que a noção de alucinação saísse do terreno da doença e ingressasse também nos termos da produção desejante, conforme O Anti-Édipo.
A questão que se impõe estaria nesse cruzamento: experimentos-drogas e produção maquínica do desejo. Uma das chaves do que foi uma pergunta insistente ao longo de Capitalismo e esquizofrenia – como captar a potência do esquizo sem se tornar um louco? Ou então na questão similar de William Burroughs para as drogas: como captar a potência das drogas sem se tornar um farrapo drogado? Não me parece haver em relação a isso.
Independentemente do solo teórico, tão diverso entre os pesquisadores de alucinógenos, havia se instalado na vida dos cientistas e dos artistas uma intensa vontade de criar novas visões sobre a produção de subjetividade. Com os alucinógenos, o tratamento era enriquecido, por introduzir no paciente um estado de alta sensibilidade e integridade corporal, com a percepção e o pensamento alterados no sentido da desindividuação e da exploração das virtudes inventivas.
Para Deleuze/Guattari, “a droga dá ao inconsciente a imanência”,[11] que, por si só, pode levar ao aniquilamento subjetivo do sujeito. De forma estrategicamente calculada, as experimentações prudentes demonstram como construir alternativas que permitam ao usuário de “plantas de poder” uma utilização segura e de efetiva transformação dos territórios existenciais.
Os experimentadores, cada qual com sua droga (Virginia Wolf, Gilles Deleuze, William Burroughs, Aldous Huxley, o casal Fitzgerald, Thomas De Quincey etc.), Castañeda e Artaud, corriam em busca de um uso do corpo há muito reprimido pelos sistemas de controle. O exemplo que se aproxima do que pretendemos dizer vem de Artaud, requisitando maior liberdade de ação sobre o próprio corpo sem órgãos, já que o organismo ter-se-ia transformado em camisa de força, diz Artaud:
“Podem me prender numa camisa de força, mas não há nada mais inútil do que um órgão!”[12] Um imenso abismo desejante toma conta da geografia interior de Artaud. “Assim como o mundo tem uma geografia, também o homem interior tem sua geografia, e esta é uma coisa material.”[13]
Protocolo minucioso, encontrar um “lugar de poder”, aprender a ficar em silêncio por longos momentos para aprender a “sonhar”. As “injeções de prudência” são necessárias nesse jogo de experimentações:
“Ele me avisara de que o primeiro estágio da faceta preparatória, que ele chamava de ‘iniciar o sonho’, consistia em um jogo mortal que nossa mente disputava consigo”.[14]
Notas
1 MACHADO, R. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 193.
2 Segundo Castañeda, o peiote (Lophophora williamsii), a datura (Datura inoxia syn. D. metaloides) e o cogumelo (possívelmente, Psilocybe mexicana). Em A erva do diabo, p. 40.
3 CASTAÑEDA, C. A erva do diabo. Rio de Janeiro: Nova Era, 2006, p. 40.
4 Idem, ibidem.
5 Idem, ibidem.
6 DELEUZE, G. e GUATTARI, F., Mille Plateaux, p. 186.
7 SANGIRARD, Jr. O índio e as plantas alucinógenas. Rio de Janeiro: Editora Alhambra, 1983, p. 36.
8 HUXLEY, A. Moksha. Porto Alegre: Editora Globo, 1983, p. 70.
9 FONTANA, A. Psicoterapia com LSD e outros alucinógenos. São Paulo: Mestre Jou, 1969, p. 112.
10 ARTAUD, A. Os Tarahumaras. Lisboa: Relógio D’Água, 1985, p. 13.
11 DELUZE,G. e GUATTARI, F. Mille Plateaux, p. 348.
12 ARTAUD, Antonin. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: Ed. L&PM, 1983; Mille Plateaux, p. 185; e ARTAUD, Antonin. “Para acabar com o julgamento de Deus”. In: WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983, v. 5, p. 93. [Coleção Rebeldes & Malditos]
13 ARTAUD, Antonin. “Surrealismo e revolução”. In: WILLER, Cláudio, op. cit., p. 93.
14 CASTAÑEDA, C. Porta para o infinito. Rio de Janeiro: Nova Era, 1998, p. 18.
Clécio Branco é psicólogo clínico, Mestre e Doutor em Filosofia. Autor das obras Ensaios de A a Z para mentes inquietas e Encontros com o Mestre I. Disponíveis na Amazon em versão Kindle e física.