Poesia & Conto

Poemas | Raquel Gaio

trago os antigos olhos de meu pai
queimando nas rochas espessas de minha cabeça
colido com seu corpo de antes –
uma imagem em chamas a vagar pelo meu rosto 

 

ouço um ritual, um lamento por detrás da coisa ausente:
são as nossas vozes inclinando os objetos diante da doença

 

você, pai, que me revela o fogo selvagem de cada coisa
faz do meu rosto cratera e do meu dorso asa
uma possível conduta para a Doença.

 

****

 

ser promessa devoção vigília
pele osso tutano
a mãe em frente ao espelho
os danos invertidos
os meus pés por dentro de tua voz
como escapar da imagem que criei de ti?

 

uma gengiva talhada por uma antiga fonação
um punho diluído pela miragem de um fogo
um homem inchado pela claridade da Casa

 

vejo a tua neblina esse cansaço teleférico
cobrindo-me com tua paisagem ambígua

 

essa que herdei me esgueirando silenciosamente
naquilo que foi o teu rosto

 

 

***

 

minha dentição é a variação antiga de um gesto de minha mãe
um gesto que some lentamente na água que envolve a boca de meu pai

 

minha dentição possui a forma de um antigo manuscrito
e vive como uma oração murmurada na gengiva de meu pai.

 

****

 

uma mulher danificada. uma mulher agredida pela Imagem. uma mulher arremessada para fora de si.
uma mulher em retiro.

 

*

 

uma mulher que materna o pai. uma mulher que esculpiu o pai na própria sombra.
uma mulher com um homem atravessado em sua mudez.

 

****

 

escrevo a linguagem que se dilacerou
escrevo o seu latejamento
escrevo o tremor desse gesto

 

uma linguagem que se esgarçou, que se abriu
escrevo com seus espaços abertos, com suas áreas devastadas

 

escrevo os seus Espectros.

 

*

estou no corpo de um silêncio. estou por trás do que foi nossa linguagem. 

 

 

***

 

 

fotografia de Raquel Gaio

 

Raquel Gaio vive no Rio de Janeiro, é poeta e artista visual. Escreveu os livros com as patas no grande Hematoma (Urutau, 2023), manchar a memória do fogo (Urutau, 2019) e das chagas que você não consegue deter ou a manada de rinocerontes que te atravessam pela manhã (Editora Patuá, 2018).

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