Poesia & Conto

Poemas | Fernando Fitas

Foto de Ron Barabash na Unsplash

 

Caminhamos sobre velhos carris

em busca de um destino,

um lugar onde a morte não nos traia ou engane,

mas somente avistamos uns vestígios de pó,

levantados pela nuvem do último comboio

que por aqui passou na direcção de um cais,

sem passageiros nem horas.

Transportamos connosco o trem dos deserdados,

como coronéis vencidos pela ânsia da batalha,

antes dela ocorrer, ou desenhando a táctica

dessa antiga guerrilha que fugia dos perigos

com a indiferença de todos os mendigos

que ignoram abrigos e mastigam apenas

umas tâmaras secas de onde transborda a ausência.

Quem nos vê pensará que trazemos nos olhos

duas locomotivas, cansadas de esperar

por viagens futuras, e guardamos no olhar

a gare a que se recolheu uma gaivota cega,

de tanto céu beber, de tanto azul rasgar,

mas que gastara as asas disparando seus voos

contra canhões de vento.

in “levar às mãos o lume”, recentemente editado.

 

 Heba Abu Nada, poeta e romancista palestiniana, 

morta aos 32 anos, por um bombardeamento  a Gaza.

 

É noite ainda em Gaza e os destroços das casas 

avolumam as sombras, como se transformassem 

o silêncio do pó no perene vestígio de cada derrocada.

Atrevo-me a dizer que é sempre noite em Gaza,

porque a todo o instante uma nova explosão atravessa a cidade,

faz estremecer os escombros, colocando em cada rosto 

a estranheza do assombro e a súbita memória dos mortos soterrados 

na pátria desse chão chamado Palestina, onde o direito à luz,

como o direito à vida há muito é desprezado.

Talvez por isso houvesse em teu olhar a inquieta claridade 

de uma premonição prenhe de tempestade(s),

a oculta alquimia dos mártires que vencem a escuridão cruel 

do bombardeamento que soterra a palavra com a areia do medo, 

            porque neles habita o velo aonde se acolhe sempre – a Dignidade.

 

“Já não há olhares a abrirem brechas no muro do tempo”1

mas ainda há uma voz a percorrer a casa onde a memória habita,

o ténue som dos passos de quem a construiu, com o barro do assombro,

o pasmo portentoso de um secreto idioma debitando palavras, 

inventando costumes, desfazendo a penumbra, 

como se o seu ofício fosse permanecer debruçado ao postigo, 

a vigiar lonjuras, a decifrar silêncios, a convocar desígnios na sépia dos retratos

que as molduras resguardam e as paredes seguram.

 

O punho que escreve amor, beijo, amizade,

não se pode eximir de escrever, igualmente,

pão, leite, água, casa…

Tudo isso que falta nas cidades de Gaza.

Só assim a poesia cumpre a sua função.

De outro modo, não passa de retórica. 

Um exercício inócuo ou uma escrita anódina. 

                   Não serve para nada.

 

Somos a geração que seguiu o seu curso sem livro de instruções, 

atravessou fronteiras em demanda do sonho e observou várias guerras 

(todas elas inúteis, muitas elas injustas) de que foi refractária e sempre recusou. 

Assistimos ainda a desaires e avanços, a pulos da ciência, 

a praças transformadas em solidões festivas, 

com palavras estendidas na varanda do tempo,

esperando um sobressalto de pálpebras feridas

na imensa brancura que habita a planície.

Assim envelhecemos, doando nossos trilhos à leveza da sombra,

ao adir que acrescenta mais inquietação ao esforço de carregarmos

o violento fardo da quimera, o tremendo vazio que apenas construímos 

– esta dolente decepção que nos fere.

 

Notas

1 Maria Quintans, in Apoplexia da ideia

fotografia de Fernando Fitas

Fernando Fitas Campo Maior, 1957. Jornalistapoeta. Trabalhou em vários jornais de âmbito nacional, nomeadamente em O Século24Horas e Tal & Qual.

Fundador e director – durante sete anos – do quinzenário Outra Banda e chefe de redacção do Notícias de Almada (entre 2005 e 2011), colaborou ainda em diversos periódicos regionais de norte a sul de Portugal, assim como numa das rádios locais do Concelho do Seixal, assumindo a responsabilidade pela emissão de programas culturais durante vários anos. 

No domínio da poesia tem várias obras distinguidas com prémios literários. Entre eles, o Prémio Agostinho Neto (União de Sindicatos do Porto/CGPT), 1999); Prémio de Poesia Cidade de Moura (1999), Prémio Literário Raul de Carvalho (2000); Prémio de Poesia e Ficção de Almada (2003 e 2014), Prémio de Poesia Cidade Ourense (Galiza), 2017. Venceu ainda os Prémios de poesia Tito Olívio, 2019, Manuel Maria Barbosa du Bocage, 2020, Prémio Internacional de Poesia António Salvado (2021), Prémio de Poesia Joaquim Pessoa (2022) e Prémio Literário Carlos Carranca (2022). 

Alguns dos seus trabalhos poéticos estão traduzidos para Castelhano, Mirandês, Italiano e Inglês.

A sua escrita estende-se da reportagem à ficção, passando pela investigação histórica e recolha oral em alguns concelhos da Margem Sul do Tejo. Autor das obras “Canto Amargo”; “Amor Maltês”; “Cantos de Baixo”; “Silêncio Vigiado”; “Mar da Palha – reportagens”; “Histórias Associativas – Memórias da Nossa Memória”; cujo terceiro volume foi editado em 2019; “A Casa dos Afectos”; “O Ressoar das Águas”; “O Saciar das Aves”; “Alma d’Escrita –Reportagens”;  “Alforge de Heranças”; “Escrevo Um Verso na Água”; “Subversiva Liturgia das Mãos”, “Olhar o assombro no êxtase da luz” “O vidro desabitado”, “Elegia dos Pássaros”, “Um corpo sob o pó” e ” A clandestina idade dos pequenos segredos”.  

Companheiro dos cantadores da resistência, José AfonsoFrancisco Fanhais e Vitorino, entre outros, na Cooperativa Cultural Era Nova, tem poemas cantados por alguns intérpretes da canção portuguesa, designadamente Chiquita e Luísa Basto.

A convite dos organizadores, participou no PAN -Encontro Transfronteiriço de Arte e Património em Meio Rural (Morille- Salamanca), em 2015 e 2018; SIAC2- Simpósio Internacional de Arte Contemporânea (Guarda 2017), no Poesia A Sul – Festival Internacional de Poesia – Olhão/ 2018, nos Encontro de Poesia e nos Encontros de Música João Roís de Castelo Branco 2021 e no 10º Encontro de Poetas Ibero-americanos, “ La Isla en Verso”, Cuba, 2023.

Agraciado em 2023 com a medalha de mérito cultural pelo Município do Seixal.

 

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