Cultura

Peladas | Alexandre Brandão

Foto de Matt Donders na Unsplash

Estefânia mal acorda, e todo o peso do mundo desaba sobre ela, claro e indisfarçado. Do sono saltou ao mundo. E o mundo não anda nada bom. Ou não é de fato bom.

 

Levanta-se da cama, calça a sandália, mas, em vez de ir ao banheiro, se ajeita na janela do quarto à espera do acontecimento de sempre. Na rua pequena, de pouco movimento, sob as duas árvores na calçada do prédio, a vassoura do porteiro luta contra as folhas no chão. Não consegue vê-lo, mas, pela hora, pela música das vassouradas, sabe que é ele. Desde que a vida anda pelada – é a imagem que encontrou para o momento –, à vista de todos, Estefânia também julga-se nua. No seu caso, sem intenção, sentindo-se envergonhada e, até nos dias mais quentes, com frio. A pá raspa a calçada, a vassoura deposita sobre ela as folhas recolhidas. Depois disso, o nhenhém metálico das rodas leva o carrinho para dentro do prédio, para a garagem, onde está a lata de lixo. Fim do espetáculo.

 

Chega ao banheiro a ponto de transbordar. Se chorasse ao assistir à faxina, um pouco de seu líquido sairia do corpo, aliviando a bexiga. Sabe que isso não faz sentido, mas chorar seria bom. E não chora, por nada, de jeito nenhum. A força da urina é forte, faz chuá em vez de xiii. Gosta dessa força e de outras igualmente corpóreas. É por isso que continua, mesmo exposta e com frio. 

 

Não quer torrada com geleia de morango. Não quer café com leite. Não quer nem mesmo o mamão, seu regulador intestinal e quem sabe também cerebral. Dizem que o intestino é o segundo cérebro. Não duvida. Um dia, sua mãe, aquela senhora pudica e expansiva, de quem a filha nunca ouvira um mísero palavrão, apanhou na rua uma piadinha mal impressa num papel de péssima qualidade e, morrendo de rir, mostrou a todos. Era a história do dia em que o cu tomou conta do corpo. 

 

O corpo resolve fazer uma eleição para definir quem irá administrá-lo. Cérebro e coração tornam-se os candidatos naturais, mas o cu, sentindo-se desprestigiado por não ter sido sequer consultado, fecha-se de tal modo que tudo começa a funcionar mal ou a não funcionar. O intestino grita, o coração bambeia, o pulmão bufa, o cérebro vacila, o fígado, o pâncreas e os rins, em desespero, empunham bandeira e exigem democracia. Diante disso, o cu toma conta da república, que, então, passa a viver dias felizes. Logo a mãe, a boca limpa, levar à família aquela piada – quem diria! O que um mamão não faz com Estefânia? Melhor comê-lo do que devanear diante dele empurrada por aquela memória fugida de um cativeiro profundo. Toma um copo de refrigerante e morde a pizza, que não era do dia anterior, talvez uma sobra da semana anterior. Da vida anterior. Sim, de quando Estefânia ainda se sustentava em pé e só estava nua quando de fato sacava a roupa e entrava no banho ou se deitava com Da… Não foi por ele que chegou aonde estava. 

 

É hora do show dos pássaros. Volta à janela, agora a da sala, maior e mais bem posicionada para observar o salto de um galho a outro, para ouvir os pios límpidos. Cantam para se acasalar? Trocam ideias? Dão conselhos uns aos outros? Cuidado com o bem-te-vi. Olha, aquele gato siamês andou circulando por aqui. Você bem poderia trocar de penas logo, essas já estão tão velhas, opacas. Com certeza, os pássaros não fazem isso. Se ao menos avisassem uns aos outros do perigo – dos outros pássaros, dos gatos, das cobras, dos fios, dos raios –, é possível que vivessem mais. Aparecem dois canarinhos amarelos, imensamente amarelos. Em tamanho maior, agigantados, poderiam se passar pelo sol. Ou pela lua. Viveriam mais. Estefânia pensa na vida, na duração da vida. Caso tivesse nascido como um pássaro, voaria de cabeça para baixo. Nunca foi de aceitar as regras, quer sejam as naturais, quer sejam as dos homens.

 

Não aceita. 

 

Aí está o ponto. 

 

Aí onde tudo começa, claro. E ela sabe, sempre soube, mas só agora o conhecimento desembocou na dor. Enfileirar nãos não significa colher sins. É uma imagem, fraca e óbvia, mas a ela se agarra, sem que isso a proteja do frio – o termômetro registra 27 graus, um dia ameno, próximo do quente. Um pássaro diferente pousa na árvore. Não sabe que espécie é aquela. Resolve chamá-lo de solitário, pois chegou sem companhia e não se aproximou dos canarinhos amarelos. Postou-se no galho como um lorde. Não, um lorde teria um séquito. Como um mendigo. Tem a soberania dos desvalidos. Ela o inveja. Está aí, inveja alguém como aquela ave, cuja cor parece um azul mordido de cinza, com toques de bege: um pássaro de cor nenhuma. 

 

Pássaro solitário, o que o senhor faz da vida? Ou será uma senhora? Dizem que os machos são sempre mais coloridos, que, não fosse assim, as fêmeas nem ligariam para eles. No mundo das aves, é o macho que gasta o tempo no salão ou na clínica de cirurgia plástica. Estefânia solta o ar pela boca, como se quisesse expelir as bobagens que passam pela sua cabeça. Talvez os pássaros confundam aquele barulho com o chamado de um outro ou com o rosnado de um bicho grande e perigoso. Mas nem assim abandonam a árvore. Estefânia se aquieta. Olha, apenas olha. Os pássaros nunca estão parados e mudos, são hiperativos, mas não medicados. Disto e das gaiolas estão livres, pelo menos aqueles. 

 

Abandona a janela à moda de uma capitã de navio que dá uma banana aos passageiros e foge do naufrágio. Quer dizer, foge de comandar o barco no naufrágio. Ela estará em sua cabine, olhando o céu, as estrelas. Sentirá a água chegar aos pés, aos joelhos, à cintura. 

 

Teme que o frio não passe mesmo cobrindo-se com um chambre ou um lençol. 

 

No meio da sala, dança. Rodopia. Passos de cancã num movimento, tuíste no outro. Requebra e então se joga no sofá. Resolve que será hoje. Nem amanhã, nem depois de amanhã, já que não foi ontem.

 

Vai, vai pelada mesmo, como a vida tem ido sem constrangimento. Toma banho com saudades de Da… não, é melhor esquecê-lo. Não o esquece. Quer dizer, suas mãos maliciosas, ao ensaboarem o corpo, não o esquecem. Mas não era o cu que presidia essa carcaça falível? Que história é essa de as mãos agirem sem obedecer a voz alguma? A delícia comandada pela desobediência a deixa calma. 

 

Está limpa. 

 

Cheirosa. 

 

Volta à janela com a intenção de ser vista ou percebida pelos pássaros. Nenhum deles está mais lá. Dois homens saem de debaixo das árvores carregando uma geladeira – decerto tirada de um caminhão que não consegue ver. Caminham com ela até à entrada do prédio vizinho. Baixam o peso na calçada, conversam pelo interfone com o porteiro. O portão é aberto, e eles entram. Estefânia tem curiosidade de saber se voltarão com a geladeira velha. Mas não pode esperar, agora tudo se tornou urgente.

 

Foto de Alexandre Brandão

 

Alexandre Brandão é autor brasileiro com dez livros publicados, entre conto, novela, crônica e poesia. Seu mais recente livro, “Aí onde não cabe”, reúne duas novelas, “Zerinho ou um” e “O Anjo ouve os Noturnos”, e saiu pela Editora Patuá, em 2024. Alexandre é cronista da revista Rubem (rubem.wordpress.com) e mantém o blog No Osso (noosso.blogspot.com).

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