Poesia & Conto

Do singular para o plural, do ser em si para o reconhecimento de si no outro | José Manuel Simões

Foto de Fabian Quintero na Unsplash

DuArte sentia-se em casa, piscou o olho a Martinho Santafé depois de ter declamado “Um urubu pousou em minha sorte”; pegou em “A nau dos corvos” de Ruy Belo que estava em cima da mesa e que mesmo lhe parecendo descontextualizado apreciou. “De súbito ao cair de mais um ano/ sou por instantes/ sinto-me ao cair da tarde do sol que antes brilhante é luz/ lustrosa e pegajosa/ agora à superfície da calçada na humilhante morte de quem era alto eterno e dominante/ sou ao cair da tarde de um ano que cai/ eu o poeta o instalado o mais que muito aburguesado/ um coletivo passageiro num elétrico mas só supostamente anónimo ou popular…”.

 

Aldo César escreveu-lhe alguns dias depois: “A paixão que ti demora, É a fórmula da tua vida, E a vida de tua paixão, É a forma sem norma, É a fórmula de ti, Nesse imenso cubículo espacial que é seu útero in te ira mente universal”. 

 

Por vezes, encontravam-se para recitar poesia, dando vida e voz a uma arte tradicionalmente oral, improvisarem, escreverem a várias mãos. Uma das mais frequentes parcerias era a que unia DuArte Camões, Dauro Franco e Fernando Marcelo: “E a lua se põe em mim escandalosa Pouso um beijo na rosa Pantera negra Enterrada no jardim Em ocaso, luz e por de mim”. Fernando improvisava “Quando minha língua Entra em ti Teu sabor geme”, DuArte respondia com “Cores de luzes Caras de seres Poetas cantando saberes”. DuArte jorrava poesia da alma enviada aos corações que acolhiam o seu corpo em abraços de mãe. Sentia-se confortável por entre sorrisos encantados e esperanças sem fim. As suas manhãs acordavam sem muitas vezes ter dormido, melodias soando com o sol a querer brindar alguma felicidade que sempre existia por ali, rendendo graças à Primavera, a da poesia e a do amor, lembrando Bertolt Brecht: “Se não houver frutos Valeu a beleza das flores Se não houver flores Valeu a sombra das folhas Se não houver folhas Valeu a intenção das sementes”. 

 

Foi então que apareceu Danjavi – que lhe chamava Joma Dassissi – para lhe alimentar o ego, dar-lhe muito e bom sexo, partilhar poesia. Ela escrevia-lhe “És como tímido e escandaloso És como o mar imprevisível Dependes da Lua” e ele respondia-lhe“Encontro-te nos carinhos que me fazem crescer, Caminhando no cume de minha montanha, Meu sonho real de ser totalmente feliz”. 

Enturmou-se em raro espírito de irmandade e como dádiva conhece um outro grupo, o dos atores, que estavam a reunir-se para criarem um novo grupo de teatro. Na escolha do nome, DuArte, que no Teatro Municipal de Macaé ficaria conhecido como Emmanuel, sugeriu“Acto”, com um“c”. E assim seria. Gilberto Alves, o diretor, aproveitando a presença e o aparente talento do português, pensou trazer com ele da Europa o existencialismo pela mão e ideologia de Sartre e criou “Melancolia”. 

 

No “Acto”, Jorge de Paula tinha o papel principal. Doce, aquela doçura que só os homossexuais exalam, enchia o palco, como ave solta, conquistando as plateias. Ficaram amigos. Às segundas feiras Jorginho ia ao“candomblé”, onde era “pai de santo”, e certa vez acompanhou-o. Viu mulheres idosas contorcendo-se pelo chão na hora em que, diziam, “o espírito desencarnava”, os tambores a soarem ritmados por entre a fumaça do cachimbo, as outras mulheres, todas de branco, a dançarem à volta das que pareciam tomadas pelo demónio. “Liberto o espírito”, levantavam-se, como se nada tivesse acontecido, e entravam na roda. 

 

DuArte foi chamado para ser recebido por “um caboclo velho” e ao chegar perto constatou que era Jorginho de Paula. A voz era outra. Falava de fato como se fosse um velho: “como diz aqui na terra você é bom demais. Tome cuidado com algumas tempestades mas nunca perca de vista que depois chegará a abundância de coisas boas”, indicou, intervalando as palavras com a fumaça do cachimbo. Era, acreditou, o corpo de Jorginho a receber outro espírito. 

 

Finda a sessão dirigiram-se a casa de uma amiga onde falaram sobre espiritismo, regressão, reencarnação e realidades paralelas. Ela estava grávida de oito meses de pai anónimo e DuArte ficou excitado com a sensação. Havia uma sensualidade naquela grávida; imaginou que lhe dava todo o amor possível para aquele bebé nascer e crescer feliz; recitou-lhe ao ouvido Rudolf Kassner: “E o universo olhado Quer desabrochar-se no amor A obra da visão está feita Faz de hoje em diante a obra do coração Perto das imagens em ti, Estas imagens cativas; Porque você as vencia: Mas você continua sem conhecê-las. Vês, homem interior Tua filha interior Conquistando com grande luta sobre mil naturezas, Esta criatura somente conquistada, Ainda não amada”. Pousou os lábios na barriga e beijou-a com os olhos fechados, a ternura de um pai. 

 

A estreia de “Melancolia” foi inesquecível. DuArte – ali Emmanuel – arrasou. A sua masculinidade, gesto firme, contrastante com o rebuliço leve de Jorginho, a convicção com que descobria o corpo, fascinado com a essência do ser. Erguendo os braços às alturas, brada “Existo. Existo porque penso, Existo como estas pedras que piso com meu corpo caminhando”. Estava visto que era um homem de palco. 

 

A peça, escrita por DuArte e assinada por Emmanuel, a partir de leituras de Sartre e de outros existencialistas, falava dessa existência, na primeira pessoa, e da natureza humana. “Existo porque posso decidir o que sou e o que fazer da minha vida, mas sei que estou conectado, dependente genética, hereditária, educacional, social e historicamente aos Outros e ao Mundo que me rodeia. A minha escolha nunca é totalmente livre. Estou condicionado. Condicionado pela minha situação, pela minha vida, pelos meus pensamentos e sentimentos, que, por sua vez, estão condicionados pela sociedade. Eu sei o que quero e sei o que vou ser. Sei também que sou responsável por mim e por todos os Outros e afirmo o meu valor ao fazer a escolha do que sou”. E continuava, do singular para o plural, do ser em si para o reconhecimento de si no outro. “Meus atos têm que ser assumidos para que toda a humanidade se possa reger por eles. É uma responsabilidade que não posso evitar mas que me deixa angustiado”. 

 

A mensagem que se pode extrair de “Melancolia”, bem como da obra literária e filosófica de Sartre, é a de um profundo apelo à sincera e profunda paixão de compreender o Homem, “Ser consciente e responsável que deve conhecer e aceitar coerentemente a liberdade das suas atitudes e reconhecer os limites da responsabilidade que aquela mesma liberdade envolve e encerra. Todo o Homem é senhor dos seus próprios atos e pode transformar realmente a sua vida pois dentro de si existe o poder de ser o que ele mesmo deseja, o poder de criar o seu próprio destino, de comandar o seu futuro, de projetar a sua vida”, enfatizava Emmanuel, empolgado, enorme em palco. 

 

O estudo preparatório para a peça estava no seu epílogo e as discussões atingiam o seu clímax. Não era fácil colocar em cena o aprendizado, sendo fundamental encontrar a forma de saber passar uma mensagem recorrente em todos os textos de Sartre: a ideia de absoluta responsabilidade e de liberdade de ação, evidenciando os aspectos de um permanente “compromisso”, assumindo com plena sinceridade todos os atos. Emmanuel decidiu então que a primeira frase da peça deveria ser dita por Jorginho de Paula e Gilberto Alves concordou: “O Homem é um ser consciente e responsável, deve conhecer e aceitar coerentemente a liberdade das suas atitudes e reconhecer os limites da responsabilidade que a liberdade envolve. O Homem é senhor dos seus próprios atos e pode transformar realmente a sua vida num destino a seguir”. 

 

No dia da estreia, saiu um poema de Emmanuel no jornal Artenativa: “Perambulam pelas ruas as existências do acaso. Não sabem o que são, Nascem sem razão, Prolongam-se na vida por fraqueza, Morrem por acaso. São, existem. Eu mesmo existo, Lentamente, Suavemente, Como as árvores, Como este chão que piso com meu corpo caminhando. E tenho consciência disso. Consciência de minha consciência. Porque existo Por acaso ou porque penso”. 

 

Na plateia, exuberante nos aplausos, estava toda a elite macaense. Fernando Marcelo considerou a peça “demasiado experimental”, a crítica apontou “uma lufada de ar europeu, mesmo que pesarosa, que nos faz olhar mais conscientemente para o que somos”. Nos cumprimentos finais, Mr. Lee Vickrey deu um cartão a Emmanuel e convocou-o a estar presente no seu office no dia seguinte.  

 

José Manuel Simões

Fotografia de José Manuel Simões

José Manuel Simões é Professor Associado e Coordenador do Departamento de ‘Communication and Media’ da Universidade de São José, Macau-China. Tem um pós-doutoramento em Ciências da Comunicação pela Universidade Católica Portuguesa, doutoramento em ‘Global Studies’ na Universidade de São José e Mestrado em Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra. É especialista em assuntos do Brasil, país sobre o qual já publicou três livros, dezenas de artigos académicos e centenas de artigos jornalísticos.

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