Cultura

Camalotes e guavirais | Raquel Naveira

Foto de Ries Bosch na Unsplash

 

 

Camalotes e Guavirais é o título genial de um livro de crônicas de Ulysses Serra, publicado em 1971. Crônicas que caminham para os extremos do lirismo, do ensaio histórico, do conto pitoresco. Obra de alta expressão literária que se tornou o livro símbolo do sul de Mato Grosso.  

            Por que Camalotes e Guavirais? Explica o autor: “Camalotes dos verdes e infindáveis pantanais de Corumbá e guavirais destes dilatados chapadões” (Serra, 1971:9). Eis aí: uma homenagem a Corumbá e a Campo Grande, a partir da sua vegetação.

            As crônicas de “Camalotes e Guavirais” são espontâneas e elegantes, “evocam pessoas e coisas, árvores, riachos, pedaços de rua, naves de igreja, sussurros dos córregos Prosa e do Segredo”.

            Lembro-me como se fosse hoje daquela noite de autógrafos, no saguão do Hotel Campo Grande. Eu era uma adolescente de treze anos, mas já sentira que escrever era minha forma de ser e estar no mundo. Guardo a dedicatória encantada: “à Raquel Carvalho, garota de inteligência e charme, neta dileta de um velho amigo de minha mocidade, Carvalhinho, estes pedaços de guavirais dos nossos imensos chapadões e de camalotes dos nossos belíssimos pantanais”.

            Sim, aquela noite foi um marco em minha vida e na de Campo Grande. Campo Grande não era mais uma cidade apenas voltada para o comércio prático, para as lojas de turcos, para o abate do gado, era uma cidade marcada para as coisas do espírito, para o mistério da palavra e da criação artística. Essa notícia corria de boca em boca, fervilhava pelos trilhos do trem, explodia pelas mentes dos intelectuais, dos poetas, dos amantes da literatura.

            Transcrevo o poema “Camalotes”, que escrevi pensando nas flores lilases, que descem como canoas aquáticas pelo rio Paraguai:

 

            Na cheia

            Os camalotes boiam,

            Estufados corpos aquáticos

            Que a correnteza leva;

            Conjunto de leques duros,

            Verdes,

            Que se dissolvem no silêncio;

            Aqui e ali um buquê de flores

            Arrebenta lilás;

            A malha fina de raízes

            Apanha peixes,

            Escamas,

            Pés delicados de pássaros que pousam,

            A canoa de folhas

            Navega sem leme

            Rumo à foz,

            À pedra,

            Ao mar que espreme

            E espuma.

 

            E o poema “Guavirais”, essa frutinha nativa, da família da pitanga e da jabuticaba, tão presente em minhas recordações de infância:

 

            Os guavirais estendiam-se pela orla da cidade,

            Saltavam dourados,

            Como que semeados pelo vento;

            A frutinha verde,

            De polpa amarela

            Era uma espécie de uva indígena,

            Misto de selva e sumo doce;

            Havia trilhas para os que vinham colher guavira,

            Alguns enchiam cestas,

            Chapéus.

            As mulheres aproveitavam os aventais

            Ou as rodas das saias;

            Ninguém parecia se importar

            Com o sol de verão

            Tinindo de mormaço,

            Secando as cascas jogadas,

            Cheirando a bagaço;

            O pôr-do-sol descia

            Como um manto de sangue suave

            E, nesta hora,

            Mágica e morna,

            Os corpos quedavam para o amor silvestre,

            Viscoso

            Como o mel das abelhas.

 

            Ir no campo catar guavira

            Era o convite generoso e fecundo

            Desta terra de cerrado.

 

            Sim, Doutor Ulysses, sempre soube que seria uma escritora desta terra de camalotes e guavirais.

 

(No dia  27 de junho, na Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, Casa Ulysses Serra, participamos de uma Roda Acadêmica sobre a vida e a obra de nosso fundador,  Ulysses Serra, ao lado dos escritores Reginaldo Araújo e Rubenio Marcelo. Trouxemos a importância de Camalotes e Guavirais para nossa identidade. Foi emocionante.)

 

Fotografia de Raquel Naveira

A escritora Raquel Naveira é brasileira, nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Título de Doutor em Língua e Literatura Francesas pela Faculdade de Nancy. Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde se aposentou. Residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo onde deu aulas na Universidade Santa Úrsula (RJ) e na Faculdade Anchieta (SP). Deu também aulas de Pós-Graduação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE)  e na ANHEMBI-MORUMBI de São Paulo. Palestras e cursos em vários aparelhos culturais como Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida, Casa Mário de Andrade. Publicou mais de trinta livros de poesia, ensaios, crônicas, romance e infantojuvenis. O mais recente é o livro de crônicas poéticas LEQUE ABERTO (Guaratinguetá/SP: Penalux). Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado (MS), Jornal de Letras (RJ), Jornal Linguagem Viva (SP), Jornal da ANE (Brasília/DF), Jornal “O TREM” (MG). Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia de Ciências e Letras de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil.

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