As escolas ensinam até hoje às crianças que o Brasil é um quadro naturalista para constar no salão nobre de castelos medievais. Uma paisagem imóvel e passiva a testemunhar festas ferozes de trogloditas estrangeiros. Que a história do país é a história da prostituição de seus mitos, do menino indígena vendendo bala de goma no semáforo, Jaci deflorada em vídeo pornô por Thor. E que a vitória dos alunos consistiria num longo ritual de passagem para transpor a tela e participar das festas de depravados medievais. Entre o Jardim do paraíso de Bruegel e o O jardim das delícias terrenas de Bosch, o país queima em brasas e congela ao mesmo tempo – cristal de sonhos e sofrimentos formado no instante mais paralítico de sua paisagem artificial.
Um artista plástico esboça linhas na tela branca para compor a paisagem de agora. Procura ser didático, pois o quadro ficará estampado nos livros escolares de amanhã. Título da obra: Baile funk de máscaras.
Ruas tomadas por hordas de mascarados, todos embalados ao funk que as caixas de som da cidade emitem. Um infinito salão de sangue crestado simboliza o Brasil. Milhares de corpos guiados por cinturões-de-choque invisíveis, freneticamente mobilizados da cintura para baixo. Corpos sedutores com pulsões destruidoras desfilando nos corredores do país.
Possuídos pela dança, coreomaníacos histéricos rasgam suas próprias roupas. Mulheres dão à luz bebês sem interromper o requebrado do funk geral. Os parem e ao mesmo tempo os devoram até à raiz do cordão umbilical. Gigantescas ondas de pessoas serpenteando e se requebrando nas ruas da cidade. Pessoas possessas, tomadas pela epidemia da dança em saracoteio predatório. Superpessoas dançando no que mais parece ser a Dança Macabra de La Chaise-Dieu em época de eletrofunk.
Um bando vestido de padres das mais diversas ordens, e máscaras de todos os Papas da história, estupra meninos de cinco a sete anos de idade jogados para fora de orfanatos. Ao lado, uma enorme aliança de fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Mundial do Poder de Deus, Assembleia de Deus, Redenção Financeira, com trajes da KKK, queima um grupo de transexuais ainda vivos. Batalhões de policiais civis e militares arrastam sobre o asfalto corpinhos de crianças e adolescentes das favelas até o centro do baile funk de máscaras e, ali mesmo, aplicam neles todos os tipos de drogas pilhadas do narcotráfico. Um enorme levante de feministas-mulheres-aranha escala o maior prédio do centro, o edifício mais falocêntrico da região, promovendo uma massiva defenestração de machos. Lá embaixo no pátio, seus filhos – cosplays de todos os personagens, da Disney aos mangás japoneses – prontamente pegam esses corpos de machos caídos e os esfrangalham, jogando fragmentos humanos numa enorme grelha sobre a qual há uma faixa toda colorida: Churrasquinhos Gummi – para você que não come carne animal e detesta humanos. Tudo leva a crer numa espécie de “noite de São Bartolomeu” neomilenar. As travestis da rua das Domésticas estão lá, num confronto entre tacapes e porretes com uma seita de negros homofóbicos exonerados das Forças Armadas, todos defensores do atual presidente ultra-racista e genocida.
Quando dou por mim, também estou no quadro. Depois de um longo período de festa na cidade inteira, corpos amontoados, empilhados, amalgamados por um chorume de bebidas alcoólicas, resíduos e drogas de todas as espécies espargem pelas ruas. Parece não haver sobreviventes além de mim em meio ao magma de restos de civilização. Por que não morri também? Fui o único neste enxame que não dançou?
Não é possível! Como pude ser tão idiota? Como não me dei conta de que eu não dançava, de que me fiz espectador no interior da cena? Teria sido o único não infectado pela peste da dança, pela ira dos fanáticos? Como não contraí esse mal da história? Logo eu que sempre fui tão sensível às pestes do mundo… Depois de tudo, deverei restar com a sensação de ter sido roubado de mim por mim mesmo? Quem, agora, para me condenar?
Sigo caminhando pelas ruas da noite pós-baile funk. Já me encontro fora do quadro? Por cada poste que eu passo debaixo a lâmpada queima. Assim percorri um longo percurso com a intenção de apagar as luzes da cidade, quando vi um carro com a porta do motorista aberta e o luminoso verde em cima do capô aceso piscando: TAXI.
Entro, sento no banco do condutor e fecho a porta. Além do para-brisa embaçado vejo que a mata ao redor avança sobre ruas e residências decrépitas. Como não reparei nisso antes? Talvez eu jamais tivesse vindo ao limite da cidade. Ouço cantos surgindo do fundo da mata que irrompe na paisagem arruinada. O que seriam, ícaros xamânicos? Empurro o encosto para trás. Durmo.
Narrativa escrita na passagem de 2020
para 2021 durante a pandemia.
Tiago Cfer é brasileiro. Pesquisador, ensaísta e romancista, prepara a edição de sua tese, concluída em 2019, revista e acrescida de um estudo sobre a trilogia de romances “Paternidades falhadas”, do escritor português Valério Romão, para o livro Desabrigo-mundo: narrativa século XXI. Em 2023 publicou o ensaio Mutações da escrita na época do vampirismo pornográfico (Ar Livre Edições), série de ensaios que saíram entre dezembro de 2021 e outubro de 2022 no LÁPIS, site que deu origem ao presente livro; e o romance Gradiente Spectrum (Editora Córrego: Coleção Vírus). Para este ano de 2024, está prevista uma ediçãoem livro de sua dissertação, Samuel Rawet: Pensamento-Prosa, pelo selo Ar Livre Edições. Traduziu os livros Literatura de esquerda (ensaio) e Kafka de férias (ficção) do escritor argentino Damián Tabarovsky. Doutorou-se em Estudos Comparados pela Universidade de São Paulo.