Sociedade

A modernização molda a natureza humana | António Pedro Dores

Foto de Joyce Hankins na Unsplash

Resumo: a natureza humana é moldada culturalmente, como um computador é moldado pelo programa que esteja a correr. Mas ao contrário do computador, as pessoas são espontaneamente recursivas (contam-se histórias) e espirituais/sociais (elevam-se e rebaixam-se ao longo da vida). A civilização moderna desenvolveu imperialmente modos de poupar energias que oferecem às pessoas: são identidades e expectativas pré-fabricadas e hierarquizadas articuladas entre si. Herdados e em transformação, os impérios controlam a espiritualidade das pessoas e, desse modo, as sociedades ao serviço das missões que lhes forem superiormente atribuídas. Isso funciona a par da utilização de tecnologias e é parte do processo material de construção da modernidade.  

 

Porque é que a geração mais escolarizada de sempre não é capaz de abolir as guerras, de reagir à produção humana de alterações climáticas e acabar com a fome no mundo? A capacidade produtiva instalada e potencial permite, em abstracto, resolver todos esses problemas práticos. É a organização social, são as subjectividades modernas que impedem a ONU de avançar nos seus propósitos.

 

O pós-guerra imaginou o estado social e a economia mista como soluções pragmáticas para se viver no melhor dos mundos possíveis. Para o século XXI essa esperança está frustrada. Mas não se sabe porquê nem como. Falta de escolaridade não será. De onde vem a falta de educação e de respeito pelos outros? 

 

As ciências têm sido financiadas sobretudo e prioritariamente para organizar a guerra. As ciências sociais, como o nome indica, são estruturais para a realização do Estado Social. Os conhecimentos estão, pois, enfeudados e limitados pelas respectivas fontes de financiamento e missões predominantes. Sociedades e conhecimentos modernos precisam de ser reeducados, como os presos precisam de ser ressocializados, para deixarem de se comportar mal. 

 

Vejamos o que se pode fazer: para as ciências sociais, os estudos da natureza humana não têm sido prioritários – ao invés, são ostracizados. Isso decorre da demarcação cognitivamente absurda, mas educativa e institucionalmente aparentemente insuperável, de fazer crer as ciências sociais distintas das ciências da natureza, as sociedades independentes e alheadas do meio ambiente. 

 

A natureza é entendida como corpus, mero objecto de exploração e receptáculo de lixo. A sociedade é ambiguamente entendida como actor social, como soberano, na condição de ser hierarquizada, o único modo de organização reconhecido pela cultura moralista hegemónica. Hegemonia produzida com base em discriminações sistemáticas, como as aristocracias ou as meritocracias ou oligarquias, que separaram os direitos das pessoas, como os dos representados e os dos representantes, alegando hipocritamente que o direito se aplica igualmente a todos. 

 

Os estados que suscitam a esperança de igualdade e respeito dos direitos humanos organizam sistematicamente políticas promotoras de desigualdades e de violação de direitos humanos, nomeadamente as guerras. As sociedades querem crer na esperança prometida. Para isso, ignoraram e esquecem as acções políticas abusivas. Cansados disso, com a vida a andar às arrecuas, chamados a votos, cada vez mais eleitores preferem partidos que não oferecem esperanças nem respeito. É expressão de um masoquismo, a síndrome de Estocolmo, que se produz entre as vítimas emocionalmente desorientadas de sequestros ou simples vigarices.  

 

A natureza humana é igualitária, quando comparada com a das formigas ou das abelhas. Porém, também é plástica, culturalmente manipulável. O espírito imperial, por exemplo, tornou-se hegemónico, globalizou-se com o capitalismo avançado, ironicamente depois do último dos impérios ter sido juridicamente abolido em 1974. Na prática, a escolarização, o nacionalismo, as universidades, as profissões, a organização da comunidade internacional, tudo devidamente hierarquizado, incorporam sistemática e quotidianamente esse tipo de estado de espírito que liga as pessoas e os estados entre si. 

 

As ideologias imperiais sentem necessidade de explicar que são igualitárias. Como qualquer bom lobo, gosta de vestir pele de cordeiro. É em nome da igualdade que estados e economias desenvolvem agressivamente políticas discriminatórias. Usam a descoincidência entre aquilo que se diz e aquilo que se faz aos limites da vigarice. Reforçam-no com ameaças sérias de extrema violência, como nas fronteiras, nas prisões e nas guerras. 

 

Da esquerda à direita, todas as ideologias convergem em convencer as pessoas a participar na missão imperial de explorar a Terra, “fazer crescer a economia”. Oferecem identidades pré-fabricadas e promessas de futuros risonhos. Oferecem protecção contra as violências geradas imperialmente em contrapartida da obrigação de ganhar a vida em competição de todos com todos ao serviço dos empregadores. Chamam a isso liberdade. 

 

Mentalmente sequestradas pela ameaça credível de viver na miséria, as pessoas tornam-se defensoras dos ideais dos sequestradores, negando reconhecer a violência a que estão quotidianamente sujeitas, atribuindo-a aos desumanos inimigos e/ou criminosos.   

 

A inoperância social perante o actual aquecimento global, em nome da manutenção da economia imperial, é um dos resultados da propagação do espírito imperial das últimas décadas. Não pode ser classificada seguramente como acto de inteligência. A estupidez civilizacional está a tornar-se evidente e desesperante.

 

Também as ciências estão divididas para melhor serem exploradas para fins militares e políticos. As ciências dominantemente são reduzidas aos seus aspectos centrípetos, às tecnociências, e desvalorizam e desconfiam dos aspectos centrífugos que qualquer actividade intelectual sempre comporta. Por exemplo, a discussão sobre o que seja a natureza humana, natureza que evoluiu social e culturalmente de modo acelerado em comparação com a sua evolução biológica, é desvalorizada e estigmatizada nas escolas e universidades: é assunto para as grandes sumidades, em vez de discutida em massa. Aqui fica o desafio para o leitor: 

 

A figura 1 representa graficamente, na horizontal, a teoria de Michael Corballis sobre os corolários da especificidade social da natureza humana que também foi descrita por George H. Mead. A recursividade obriga e proporciona às pessoas, grupos, organizações, sociedades e civilizações a configuração de identidades associadas a expectivas que se orientam mutuamente, seja sob a forma de auto-controlo ou ordem social quotidiana. Cada pessoa desenvolve representações íntimas do seu passado e do passado dos outros ligados culturalmente a futuros previsíveis, passados e futuros em permanente reelaboração no presente. Presente ocupado em larga medida por este incessante labor de reconstruir identidades e expectativas, conforme as influências e as situações sociais. 

 

A organização social do trabalho incluiu a elaboração e a distribuição de identidades objectivadas, como as certificadas por escolas e profissões. Identidades associadas a distintas expectativas legítimas em permanente reelaboração, sujeitas a lutas sociais, atendendo a critérios de elevação e rebaixamento socioeconómicos que promovem ou não empenhamento e resiliência pessoais em função de oportunidades procuradas e eventualmente proporcionadas pela sucessão das situações e oportunidades.

 

Figura 1. Quadro analítico para estudar a natureza humana

 

Quando se escolhe uma profissão ou um conjugue ou um grupo de amigos é indispensável elaborar identidades mais ou menos credíveis para apresentar e representar socialmente em cada situação. Dessas elaborações dependem as expectativas suscitadas e trocadas entre as pessoas envolvidas. Embora não haja uma segunda oportunidade para fazer uma boa primeira impressão, as relações sociais são, em larga medida, o trabalho cruzado de manutenção e de transformação das identidades sociais, tendo por horizonte as expectativas a elas associadas.

 

A figura 1. representa horizontalmente a teoria de Corballis como função do tempo, do passado, do presente e do futuro. Cruza na vertical, como a função do espaço, uma teoria sobre a elevação e rebaixamento sociais. Espaços geográficos hierarquizados internacionalmente, como Norte-Sul, em regiões economicamente deprimidas e metropolitanas, em urbanizações segregadas por classes, transportes públicos ou funções sociais, como desportivas, comerciais, industriais, etc. Regiões para extrativismo mineiro, turístico, industrial ou outro, e regiões ambientalmente protegidas.

   

A modernidade avançada caracteriza-se pela intensificação da vida dentro de portas, em organizações com localizações estudadas e participadas por gente a quem se exigem determinadas características identitárias em troca de promessas de realização de expectativas pré-fabricadas pela publicidade e pelos contractos de trabalho. São espaços tempos sistematicamente hierarquizados e de separação social de sectores e fileiras de actividade, especializados como práticas artísticas, religiosas, educativas, administrativas, científicas, de comunicação social, de repressão, militares, etc., todas ao serviço da missão imperial e comprometidas em não se intrometerem com as decisões estratégicas a cargo das respectivas administrações. Administrações que se articulam mutuamente em obediência a linhas de comando verticalizadas, nas mãos de elites. 

 

Esta teoria da elevação e do rebaixamento produzidos pela natureza humana pós-moderna reflecte o fundo teológico que prefigurou as sociedades modernas. Separa o céu da espiritualidade, reservado às elites, do inferno estratificado dos corpos quotidianos em luta pela sobrevivência. Mas é também a base actual da epistemologia científica. Segundo Descartes, a res cogitans – a do “penso, logo existo” – vive separada da res extensa, como os sujeitos, os actores, vivem independentemente dos objectos e das culturas com que convivem. Como as pessoas viveriam independentes da natureza e, também, as elites viveriam independentes das sociedades que comandam e exploram. 

 

Para os fenomenologistas, tudo quanto as pessoas que pensam podem classificar como verdade é aquilo que decidem interpretar das percepções que sentem. Podem fazê-lo por hábito ou com abertura de espírito. Para os racionalistas, ao contrário, a natureza está lá, mais ou menos fixa, à espera de ser descoberta pelas experiências científicas desencantadas, sem estados de alma.

 

Para os fenomenologistas, os mitos são as formas que a verdade vai assumindo em função das aquisições culturais herdadas e dos seus usos quotidianos e rituais. Para os racionalistas, a verdade, por definição, não é mítica. É moderna, imperial, universal, tendencialmente eterna. 

 

Todos reconhecem que a verdade não é perfeita. Mas os fenomenologistas não procuram a perfeição: preferem valorizar o presente, a experiência, o dinamismo. Os racionalistas acreditam no progresso, na acumulação. Transitam para o mundo idealizado das expectativas aquilo que não pode ser realizado hoje. Aprenderam dos católicos a imaginar livremente a perfeição, nomeadamente a verdade, no Céu, e a aceitar a sua inviabilidade prática, neste Inferno terrestre. Viveremos, como diria Voltaire pela boca de Pangloss, o professor de Cândido, no melhor dos mundos possíveis, sempre a melhorar. Quando tudo piora, porém, torna-se difícil manter o prestígio dessa razão. 

 

Entre a propaganda e a experiência desenvolveu-se um hiato onde vivem as falsas promessas de bem-estar, de paz e a alienação decorrente. A manipulação política organizada de identidades e espectativas, e a moral social hierarquizada imperialmente, separam as teorias das práticas: isso obriga a um trabalho social intenso realizado a todos os níveis sociais de reconciliação do que é separado à partida: as elites e as massas, os sujeitos e os objectos, o topo e o baixo.

 

Os direitos humanos e as suas frustrações são um exemplo do mais alto nível da manipulação política. Os direitos civis e laborais são exemplos quotidianos de violações sistemáticas das expectativas. As políticas de redução dos riscos ambientais, de corrupção e de guerras são outros exemplos onde campeiam as frustrações e as violações praticadas por agentes autorizados dos estados e da economia.    

 

Em resumo: a natureza humana é moldada culturalmente. É espontaneamente recursiva e espiritual. A nossa civilização desenvolveu imperialmente modos de poupar energias oferecendo identidades e expectativas pré-fabricadas e hierarquizadas, herdadas e em transformação controlada, cujos resultados práticos são desperdício de energias que defraudam as expectativas de bem-estar da maioria. Sem o espírito imperial a infra-estruturar as sociedades modernas, a missão imperial de explorar a Terra seria impraticável por falta de apoio social às decisões das elites. E o espírito imperial está aí, apesar de estar a criar mais problemas do que os que é capaz de resolver.

 

Referências

 

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Goleman, D. (1999). Inteligência Emocional. Temas e Debates.

 

Harari, Y. N. (2018). Homo Deus; História Breve do Amanhã. 20/20 Editora, Elsinore.

 

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Sandel, M. J. (2020). The Tyranny of Merit. Penguin Books. 

 

Silva, J. C. G. da. (2003). O Discurso Contra Si Próprio. Assírio e Alvim.

 

Fotografia de António Pedro Dores

António Pedro Dores, sociólogo, professor universitário aposentado, autor dos blogs https://sociologia.hypotheses.org/https://libertacao.hypotheses.org/

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