Resumo: este texto exprime a frustração de quem não sabe como, mas quer aprender, a libertar-se da sua identidade de esquerda saudosista do passado, quando a esperança de ver realizadas as promessas e expectativas de esquerda se aproxima do zero.
A esquerda perdeu a alma, o ânimo está esgotado. A aspiração a uma sociedade sem classes é-lhe risível. Tudo quanto pode aspirar é à resistência: a lutar – sem sucesso – contra a pobreza e as desigualdades, reduções economicistas da imaginação revolucionária. A direita responde que também ela quer acabar com a pobreza e com as desigualdades imerecidas, apenas recomenda outro caminho democraticamente complementar. O que divide esquerda e direita é saber onde sediar os monopólios: nos estados ou nas multinacionais, ditas mercado. O debate, portanto, é sobre que tipo de economia mista é preferível adoptar em cada momento.
Este centrão político está a revelar-se insuportável, desesperante. Esquerda e direita esperam a retoma da esperança do ressurgimento de uma imaginária época de ouro, a dos anos sessenta do crescimento económico, a época de instalação do estado social e dos protestos revolucionários a que o crescimento económico permitia dar resposta. As esquerdas e as direitas têm usado, cada uma a seu modo, essa memória saudosista e distorcida da coexistência de democracia, fascismo e estalinismo de que cada um tira a parte que mais lhe convenha ideologicamente. Depois da derrota final do estalinismo, a democracia imaginou ser a vencedora até que o aumento das desigualdades, dos discursos de ódio, da repressão e da guerra revelam um risco sinalizado por alguns na década de 90: a implosão ao retardador do império ou superpotência que sobrou da Guerra Fria, a Ocidente.
Atrevamo-nos a pensar fora da caixa. E se, desde o início, a esquerda trabalhista se tivesse posicionado de forma submissa em relação à direita? E se as aspirações de esquerda tivessem sido sempre complementares às aspirações capitalistas? Haverá uma lei inelutável que obriga as esquerdas do socialismo utópico, da social-democracia, do comunismo, a acabar por trair as estreitas possibilidades políticas de autonomia perante os partidos capitalistas?
Claro que há problemas de carácter pessoal com as personalidades dos líderes. Mas talvez seja um erro de concepção esperar do poder absoluto outra coisa que não seja a corrupção do carácter, à direita ou à esquerda. Seguro é que tem sido historicamente impossível manter os trabalhadores mobilizados na defesa dos seus interesses estratégicos. Quando isso acontece, dura pouco tempo, não perdura nem se expande a não ser na forma de esperança. Actualmente, nem isso. E não se vê como o fazer melhor no futuro próximo.
Os trabalhadores, extenuados, têm preferido sobreviver sacrificando-se ordeiramente, pessoal e socialmente, para cumprirem as missões que lhes são superiormente encomendadas pelos empregadores, sem querer saber da finalidade e da moralidade dessas missões. Imaginam-se livres, quando se dividem politicamente entre esquerdas e direitas ou nas opções que fazem do uso do tempo de férias. O tempo que lhes resta para desenvolverem práticas políticas, humanitárias e de solidariedade é pouco e, sobretudo, é secundário e secundarizado.
O proletariado é uma criação da burguesia e foi instado pelos revolucionários para insistir na linha da igualdade da revolução burguesa, entretanto declarada completa pela burguesia. Segundo os cálculos económicos de Marx, as crises do capitalismo tornam-no inviável a prazo – consequência da queda tendencial da taxa de lucro compreendida por Adam Smith. Mas seria o espírito revolucionário e solidário do proletariado que acabaria com o capitalismo, antes da sua autodestruição económica.
Ao fim de dois séculos de experiência, as pessoas estão desorientadas. O capitalismo já se desenvolveu demais em todo o mundo e reforçou-se. As revoluções têm tido o efeito de reforçar o capitalismo, mesmo nos países comunistas.
Para a burguesia, também no pós-guerra, vive-se na melhor sociedade possível, como dizia em meados do século XVIII Pangloss, o professor criado por Voltaire. Como dizem os defensores da democracia ocidental: “Não há alternativa”! ou “É o pior de todos os sistemas, com excepção de todos os outros”! Depois da implosão da União Soviética – e até novas ordens – o proletariado concorda tacitamente com essa ideia burguesa: o socialismo real não se constitui em alternativa. O próprio Partido Comunista Chinês adoptou o capitalismo e integrou-se na comunidade internacional.
No pós-guerra, com a derrota dos nazis na guerra, as esquerdas tiveram a sua oportunidade para brilhar na União Soviética e na Europa. Com o estado social, a Europa Ocidental organizou a aceleração da intensificação dos processos capitalistas, competindo com a nova sede imperial, os EUA, para mostrar as suas capacidades de cumprir a missão universal de criar uma humanidade pacificada.
Depois do alargamento da UE, da implosão da URSS e da globalização, foi de surpresa que assistimos ao longamente anunciado e ignorado despertar dos neo-nazi-fascismos e das guerras (mesmo se anunciado pelo menos desde 2003, Diogo Freitas do Amaral. Do 11 de Setembro à crise do Iraque). A surpresa revela o desajuste entre as teorias de boa-vontade sobre a qualidade universal e humanitária da missão imperial ocidental e a realidade da política e da vida das pessoas, não apenas as discriminadas, abusadas, exploradas, estropiadas, mas da humanidade submetida como um todo.
O ditador de Chaplin que brinca com o mundo, equiparado a Hitler, é afinal o testa-de-ferro da eminência parda criadora das máquinas modernas que o cineasta também mostrou no seu trabalho. As eminências pardas do pós-guerra, as elites, industriais primeiro e financeiras depois, funcionam através dos seus representantes democráticos e fascistas, de esquerda e de direita. Ao centro e nos extremos, protagonizam conspirações sem respeito pelas teorias. Arranjam-se uns com os outros para tomarem decisões concertadas nas costas dos eleitores sobre como fazer crescer os números do PIB. Como fazem isso, apesar de se odiarem mutuamente, da diversidade de interesses que prosseguem e dos controlos democráticos?
Como acontece nas competições desportivas ou na guerra, as elites sobreviventes tornam-se as melhores amigas. Mas qual é o jogo das nossas elites? Quem desenha as regras de jogo e treina os árbitros? Porque é que a força do proletariado não se faz sentir como Marx previu?
A esquerda que se entende como o verso da direita desconstruiu a economia burguesa, sobretudo com Marx. Mas jamais construiu uma economia proletária, a de uma sociedade sem classes: quem trabalharia sem ser obrigado a sacrificar-se a um empregador? Pergunta o vulgo. Afinal os ricos e os chefes não trabalham, não é? Como pagar férias e reformas sem haver quem trabalhe intensamente o ano inteiro?
O ânimo voluntarista que Thomas More desenhou na Utopia no início do século XVI espalhou-se pelo mundo, sobretudo após a Revolução Francesa. Conquistou a imaginação dos revolucionários, animou as energias sociais, mas esgotou-se. Que ânimo foi esse e como resistiu tanto tempo? Porque não enterrou o capitalismo, nem a escravidão, nem o clericalismo, nem o totalitarismo, nem o patriarcalismo, nem o colonialismo, nem o imperialismo, apesar dos fortíssimos movimentos e das suas vitórias nesse sentido?
Os estados de espírito das sociedades mudam. A esperança e a desesperança, a submissão e a revolução, sucedem-se em ritmos complexos e a diferentes níveis, pessoal, de grupos, institucional, nacional, internacional. Esses biorritmos, digamos assim, as montanhas-russas da história, acompanham processos que perseveram e evoluem, como o capitalismo. Este dura há mais de duzentos anos. A missão imperial ocidental dura há mais de meio milénio. A organização imperial dura há uma mão cheia de milénios. O que caracteriza a versão mais moderna das práticas imperiais é a extinção em massa da diversidade cultural, a par da nova onda de extinção de espécies. O modo de vida americano, a globalização, as metrópoles, a gentrificação, a industrialização geral, a proletarização da humanidade, criaram o que Marcuse chamou pessoas unidimensionais, hiperespecializadas, socialmente anestesiadas, resultado sofisticado do taylorismo e das suas sequelas. Primeiro “qualquer cliente pode comprar um carro de qualquer cor, desde que seja preto!” declarou Henry Ford, pioneiro e promotor autorizado do modo de vida americano. Hoje podemos escolher as cores e os acessórios secundários, mas não podemos optar por meios de transporte amigos do ambiente e menos promotores de guerras por acesso a recursos estratégicos.
Se inventariarmos a presença do estado-de-espírito predador na história, nomeadamente a presença do espírito imperial, verificaremos que ele só há poucos milhares de anos passou a ser utilizado para organizar sociedades. O prestígio dos impérios só foi quebrado no século XX, e o estatuto legal de império só foi abolido em 1974, com a Revolução dos Cravos. Não será por acaso que só a partir dessa altura a humanidade tomou consciência da insustentabilidade da missão de exploração da Terra auto-atribuída pelos impérios ocidentais. Como uma serpente que come a sua cauda, a humanidade desenhada pela cultura ocidental tomou-se a si mesma como alvo sacrificial e objecto de exploração – o que foi bem descrito por Marx e pela sua teoria da exploração capitalista.
Mas é preciso interpretar os autores revolucionários à luz da realidade. Por exemplo, dizer que o velho império chinês não é império só porque os EUA são o império dominante e o Partido Comunista Chinês é de esquerda, é no mínimo estranho. Porém, é isso que, em desespero de causa, grande parte da esquerda pensa e diz. A ânsia de poder (imperial) que parece revolucionária a grande parte das esquerdas é uma armadilha ideológica. Armadilha indiciada pela desconsideração de experiências revolucionárias persistentes de poder intensionalmente não imperial, como as dos zapatistas ou dos curdos de Rojava.
Durante a Guerra Fria, nos anos sessenta, o maoismo fez furor precisamente por ser uma política anti-imperialista, contra os EUA e contra a Rússia, então soviética. Porém, também na China o império prevalecia e prevaleceu. Hoje, sem ilusões a esse respeito, a esperança não tem por onde medrar. Que venha o fascismo!, dizem os eleitores enquanto a esquerda definha.
Nos últimos séculos, ser de esquerda tornou-se um traço identitário para muita gente. Actualmente é parte do ciclo vicioso mental e prático que torna a acção social dita revolucionária de facto conservadora. Não é a economia, estúpido! Deveria ter respondido a esquerda a Bill Clinton, ao fechar o século XX. Mas não o fez. Ainda hoje falta ânimo à esquerda para se separar do economicismo, da ideologia burguesa.
Entrámos em 2022 numa época em que não é mais possível negar a presença da guerra na vida da União Europeia. Porém, a esquerda, dividida sobre que partido imperial tomar, une-se em descortinar na guerra não o império, mas os lucros e o capitalismo; não descobre nas guerras os abusos de soberania e a disfuncionalidade dos estados-nação, mas apenas os negócios em competição. Os trabalhadores, esses, continuam a trabalhar, agora na transformação de uma economia de paz numa economia de guerra – para eles tudo é emprego e trabalho. A solidariedade está a cargo dos doadores, as elites organizadas internacionalmente sob a forma de credores.
A esquerda reduz – mal – o império às instituições que o administram, ao imperialismo. O império, o espírito imperial, adorado e odiado pelas pessoas de todas as classes e nações, é como o diabo: insinua-se sem consentimento em cada um de nós. Não o faz de uma forma apenas espiritual: grande parte do trabalho moderno dedica-se a estimular a incorporação do espírito imperial nas crianças, nos jovens e nos adultos. É essa a principal função das escolas, das universidades, das organizações, das profissões, das polícias, da comunicação social, da inteligência artificial, todas muito apreciadas pelas pessoas civilizadas no seio das sociedades imperiais.
As avaliações escolares e profissionais não distinguem as pessoas dos seus actos. Hierarquizam assim as crianças entre as melhores e as piores, as que só apanham negativas e as que apanham nota máxima, como se isso decorresse de uma rígida natureza individual das pessoas. As avaliações discriminam e hierarquizam socialmente a pretexto de critérios arbitrários de autoridade inquestionada, reforçados por práticas de humilhação para inibir os protestos ou as simples perguntas. O espírito imperial vai-se incorporando com a escolarização e a profissionalização, e juntamente com a convicção da imutabilidade da natureza humana individual, torna-se uma segunda natureza das pessoas.
Parte de leão da força-de-trabalho mais qualificada mais bem paga, mesmo se é de esquerda – como eu sou – trabalha para incorporar noutros o espírito imperial, nomeadamente através da tirania do mérito, a meritocracia, e da redução da ciência aos seus aspectos centrípetos, à tecnociência utilitária.
A esquerda precisa de fazer uma crítica mais ampla do que a auto-crítica. A esquerda deve aprender a deixar de ser de esquerda, mudar o lugar de fala – para usar uma expressão na moda – e descortinar os seus erros sobre panos de fundo mais abrangentes. As esquerdas têm duzentos anos e o espírito imperial que a submete tem milhares de anos. Não basta ser anti-capitalista (isso já provou ser insuficiente). É preciso ser anti-imperial: contra as discriminações, as hierarquizações e as justificações mal-amanhadas para insistir nelas e esquecer as misérias, as guerras, a impotência, as limitações de classe à liberdade dos trabalhadores e dos desempregados.
Ao imaginar o comunismo como a radicalização do capitalismo, eventualmente animadora nas condições económicas e sociais do século XIX, criou-se uma armadilha para o século XXI. Não será o crescimento da economia que inventará uma sociedade sem classes. Realizá-la requererá, se vier a ser possível, a persistente inspiração de espíritos revolucionários capazes de criar missões estimulantes que unam os trabalhadores em torno do propósito de erradicar as cumplicidades gerais a favor do espírito imperial.
Há que condenar e romper com a adesão da burguesia e dos seus trabalhadores à missão imperial de explorar a Terra desenhada pelas aristocracias europeias. Há que denunciar os modos como o espírito imperial foi inculcado como segunda natureza nas pessoas civilizadas. Há que reverter os muitos mecanismos de inculcação e substituí-los, um a um, por mecanismos de educação centrífuga, libertadora, humanitária.
Uma dessas missões será acabar com o intolerável tormento da ameaça de desemprego. Numa sociedade sem classes, seja qual for o formato, não haverá empregos, que é a forma mais eficaz de evitar qualquer risco de desemprego. Conseguem imaginar?
António Pedro Dores, sociólogo, professor universitário aposentado, autor dos blogs https://sociologia.hypotheses.org/ e https://libertacao.hypotheses.org/