Cultura

Viúvas do sal, herdeiras do mal | Luiz Eduardo de Carvalho

Estou sob o impacto da leitura de Viúvas de Sal (romance – Ed. Patuá, 2022), da querida Cinthia Kriemler, amiga literária, carioca radicada em Brasília, interlocutora já de alguns diálogos que se intensificam, como se nossas letras aprendessem, terna e gradualmente, a darem-se as mãos, apesar de caminharem por temáticas tão distintas. Cinthia, cabe ressaltar, traz-nos narrativas predominantemente envolvidas com o universo feminino, num viés ativista que investiga, esmiúça e delata os preconceitos, as diferenças e, mais acuradamente, a misoginia, as violências, as perseguições, as discriminações.

 

Ambientada na fictícia Porto do Xaréu, a narrativa deste seu mais recente título conta a história de viúvas de pescadores que, ao herdarem os postos dos falecidos maridos, formaram uma cooperativa de pescadoras que as articula numa união mais pela resistência do que pela intangível autonomia que indique alguma condição de igualdade. Apesar dessa convergência que as torna semelhantes, são distintas em seus dramas pessoais que perpassam diversos dos mais importantes temas relacionados com a luta por direitos equânimes, pelo empoderamento feminino, pelo domínio de direitos saneadores de suas fragilizadas realidades, mediante a libertação de padrões patriarcais baseados em normas de gênero que historicamente as oprime.

 

Assim, o enredo abre-se a fatos que ilustram os temas mais pungentes do feminismo: exclusão social, abuso e violência sexual, aborto, mutilação genital, prostituição, manipulação política e aliciamento religioso são apenas alguns dos traumas e dramas apresentados pelo conjunto de personagens, cujo cotidiano encerra-se em dura luta pela sobrevivência num cenário de imensa pressão cultural nos âmbitos político, social e econômico.

 

O microcosmo representado pelo Porto do Xaréu ilustra com abrangente extensão o lugar em que o pertencimento feminino só subsiste às custas do enfrentamento contra a dominância masculina que, articulada em uma complexa teia de poder, mina quaisquer tentativas de emancipação consistente dessas mulheres. O saldo do embate é violento e deixa muito mais vítimas no lado hipossuficiente, embora derrame também algum sangue dos dominantes, mais como consequência de resistências pontuais em questões circunstanciadas do que como resultado de uma articulação coletiva pautada no enfrentamento das desigualdades impostas pela prevalência patriarcal. 

 

Assim, a associação laboral torna-se a alegoria para a reunião de fragilidades que, em conjunto, revelam a extensão dos danos causados mediante as diferenças impostas pela perversa dinâmica da desigualdade de gêneros aceita como valor natural em nossa sociedade machista. 

 

Não bastasse a imprescindível incursão temática, o livro é também um primoroso exercício de narrativa: enxuta, objetiva, realista, tecida com frases curtas e contundentes, sem ornamentos metafóricos ou outras distrações estilísticas na tessitura do texto, o que contribui com imensa sinergia para a criação do clima de aspereza, escassez e litígio que o enredo propõe. Assim, o que facilmente poderia ter se tornado um libelo pela causa feminista, caso fosse entornado no bojo de caudalosas digressões ou densas e herméticas figurações, torna-se um franco estímulo à reflexão sobre as causas e consequências desta questão estrutural tão difícil de combater.

 

Longe de apontar auspiciosas soluções mágicas, Viúvas de Sal deixa-nos náufragos, à mercê dos fatos que apresenta com o fito de ilustrar a complexa realidade por cuja mudança convoca-nos ao alistamento, na frente de uma luta ainda muito longe de ser vencida. Melhor assim: um passo consistente rumo à verdadeira conscientização e consequente engajamento, muito mais valioso do que toda uma caminhada de devaneios por falaciosas soluções alienadas dos verdadeiros mecanismos que envolvem e subjugam as vítimas desta desmedida opressão.

 

P.S. Foi com imensa satisfação que vi o nome desta obra entre os finalistas do Prêmio São Paulo de Literatura, um dos mais prestigiados no Brasil. 

 

Cinthia Kriemler é carioca e mora em Brasília. Autora, pela Editora Patuá, de O Sêmen do Rinoceronte Branco (Contos, 2020). Tudo que Morde Pede Socorro (Romance, 2019); Exercício de Leitura de Mulheres Loucas (Poesia, 2018); Todos os Abismos Convidam Para um Mergulho (Romance, 2017) – finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018; Na Escuridão não Existe Cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os Escombros (Contos, 2014); e Do Todo que me Cerca (Crônicas, 2012). Organizou a antologia de contos Novena Para Pecar em Paz a convite da Editora Penalux, em 2017. Tem textos e poemas publicados em diversas antologias e em revistas literárias.

 

 

Fotografia de Luiz Eduardo Carvalho

 

Luiz Eduardo de Carvalho é escritor com 12 títulos publicados, entre eles os multipremiados Xadrez, Evoé, 22!, Sessenta e Seis Elos e Um Conto de Réis (e de Rainhas).



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